Não sei precisar de onde surgiu a ideia, mas num ano de pandemia onde todas as provas de triatlo foram canceladas ou estão em suspenso, eu precisava de um estímulo, um objetivo desportivo em que me focar.

Aqui e ali já tinha ouvido falar deste desafio de atravessar o Grand Canyon duas vezes no mesmo dia, um “jogging” de 70km com um desnível à volta 4000mts, um tal de Rim2Rim2Rim (R2R2R), um evento que apenas uma minoria de atletas de ultra-trail se propõe a fazer, e onde, em 2016, o ultra-maratonista Jim Walmsley estabeleu um record brutal de 5h:55m:20s. Acho que o meu fascínio aumentou nessa altura, mas com um calendário sempre focado no triatlo nunca tinha havido oportunidade de pensar no assunto a sério… até 2020. O ano em que a Covid19 nos pôs a fazer coisas estranhas.

Para pôr as coisas em perspetiva, apenas descer e subir o Canyon até ao rio Colorado implica um percurso em média (há 3 vias principais) de 23km com um desnível de 1500mts, é um caminho íngreme, cheio de ganchos apertados, pedras soltas, pouca ou nenhuma sombra, pontos de água limitados e onde as temperaturas facilmente chegam aos 40C (ou mais no Verão). Na realidade, o site do Parque Nacional do Grand Canyon tem uma advertência – em letras maiúsculas! – alertando que este percurso não deve ser feito no mesmo dia. Outro fator importante a considerar é que o isolamento é total, à parte de um pequeno lugar, chamado Phantom Ranch, que é tão remoto que é abastecido por mulas, não há qualquer vestígio de civilização e o único meio de sair do Canyon é pelo próprio pé ou de helicóptero.

No entanto, estávamos em Julho quando decidi que ia tentar o R2R2R e ainda tinha cerca de 2 meses de preparação para o grande dia, sábado, 19 de Setembro. Não tenho ambição de me considerar um corredor de ultra-trail e abraço estes desafios como isso mesmo um desafio que faço à parte dos meus objetivos profissionais. Claro que uma vez competitivo, sempre competitivo e estabeleci que gostaria de completar o R2R2R em menos de 10h.

Obviamente que, no geral,não estava preocupado com o meu nível de fitness, mas triatlo e ultratrail são modalidades diferentes. Eu nunca tinha corrido mais de 46km num só dia, tive de me habituar a correr com o camelback (colete de hidratação) e planear para um conjunto de possíveis eventualidades e desastres que normalmente não fazem parte da checklist de um Ironman. Toda a minha preparação foi feita em conjugação com o meu treino de triatlo habitual. Para prevenir lesões, não inclui treinos de corrida com mais de 30kms, mas fiz treinos de corrida duas e três vezes por dia. No pico cheguei a ter um volume de corrida de 122km semanais e fui, muitas vezes, correr na hora de maior calor.

O percurso que defini fazer consistia em iniciar o dia a descer pelo lado sul, via South Kaibah Trailhead, subir ao North Rim e terminar novamente a sul, via o Bright Angel Trailhead.

Fui de véspera para o Grand Canyon, apesar de ter a sorte de viver apenas a 3h de distância, a partida estava marcada para as 4h30 da manhã, e eu agradeço qualquer minuto de sono extra. Curiosamente o primeiro desafio do dia acabou por ser chegar ao início do trilho. É que às 4h está escuro como breu e não há propriamente qualquer iluminação artificial no Grand Canyon, mas como também não há trânsito depois de alguns enganos chegámos lá. Além de evitar o calor a grande vantagem de começar tão cedo é evitar o engarrafamento causado pelas mulas que abastecem Phantom Ranch. Não há carros ou sequer bicicletas permitidas nos trilhos, as mulas são quem transporta os bens e têm sempre prioridade nos trilhos.

Como prova a foto de grupo, éramos 16 valentes, homens e mulheres, jovens e menos jovens, todos entusiasmados com o que aí vinha. Cada um a seu ritmo começámos a descer, um conjunto de pontinhos de luz naquela imensidão do desfiladeiro. Uma experiência inesquecível. Correr envolto em total escuridão, apenas guiado por aquele pequeno foco de luz do frontal, e num silêncio quase absoluto, ouvia só a minha própria respiração e o eco da brisa que corria. Mesmo sem ver, sentia e sabia o abismo ao meu lado.

Mas esta descida fez-se tranquila e rapidamente e, antes do sol nascer, atravessava, pela primeira vez, a ponte suspensa sobre o rio Colorado. Em breve estaria já a iniciar a subida do North Rim. Para chegar lá acima são 26km de subida, com 1800m de desnível, como alguém dizia o equivalente, mais ou menos, a subir 3 vezes e meia o Empire State Building. Ou um pouco mais que a Serra da Estrela se se a começar na Covilhã. E sabem o que vos digo? Subir nem é mau. O pior são os mesmos 26km a descer. Está certo que a descer todos os santos ajudam, mas na realidade é a descida que mais mói as pernas. E a meio da descida comecei a perceber que o meu ritmo inicial talvez tenha sido um pouco… otimista? Quando finalmente cheguei cá baixo já pensava, “mas no que é que eu me vim meter?!“.

No regresso parei em Phantom Ranch a recuperar energia, comtemplar a vida, brincar com os esquilos (claramente sujeitos a uma dieta rica em barras energéticas), na esperança de que toda uma frescura se voltasse a instalar nas minhas pernas. Mas não. Em breve até seria relembrado do que é uma cãibra. Pior, naquelas decisões em que as pernas já decidem pelo cérebro comprei uns M&Ms e umas Oreo. Foi uma má escolha, embora ambos sejam ricos em hidratos de carbono não têm a melhor fonte de açúcar, nem os minerais e eletrólitos necessários. Não me senti melhor depois de os comer e devia ter-me cingido ao meu plano nutricional. Erro de principiante.

Chegado ali não há outra hipótese que não continuar, que parecendo que não a volta de helicóptero ainda é cara. Por esta altura já desconfiava que seria difícil acabar dentro das 10 horas, mas ainda assim estava decidido a tentar. Pus-me a caminho, em modo power walking, para a última e aquela que seria a subida mais dificil do dia, o Bright Angel Trail. Era meio-dia e estavam 38C.

O Bright Angel Trail é uma subida um pouco mais longa que a descida inicial, no entanto, tem pontos de água e, no final, a presença de Park Rangers pelo que achei que seria uma rota mais segura. Segurança relativa que este é considerado um dos 10 trilhos mais perigosos dos EUA, justamente pela sua exposição ao calor e grau de inclinação, numa altura que inevitavelmente toda a gente tem muitos kms nas pernas e horas ao sol. Consciente que tinha de beber constantemente – o meu camelbak tinha bebida isotónica e não apenas água -, lá fui eu.

Que subida difícil! Tantas cãibras, tanto cansaço, e uma subida cada vez mais íngreme, com os últimos 5kms a mais de 14% de inclinação (28-30% em alguns setores). Cheguei ao fim com 10h09m. Ah…, faltou um danoninho, mas as pernas não davam mais. Não vou mentir, acabei deveras cansado, mas feliz. Que realização! Atravessar o Grand Canyon duas vezes em 10h09m. A verdade é que não faço estas coisas porque elas sejam fáceis ou conseguidas sem esforço, pelo contrário. Até porque parte deste desafio é obviamente também mental, e, de certa forma, é isso que o torna atrativo. A auto-superação não está em ter feito mais de 70km com as pernas, mas sim em ter vencido com a cabeça a dor, o cansaço e a vontade constante de desistir.

Assim que terminei mandei uma mensagem à minha mulher a dizer que nunca mais fazia isto outra vez, ela respondeu-me com um daqueles memes da desmemoriada Dory que dizia “Nunca mais corro outra vez. … Olha, olha, uma corrida!”. Diz que ela me conhece melhor que ninguém.